Maria dos Açores

Capítulo I – A Casa em Suspensão

(Matriz Ativada: Maria dos Açores | Elo Inicial)

Numa rua que os mapas não ousam nomear, onde o rumor do mar chega apenas em frequência, ergue-se uma casa com paredes porosas ao tempo. É ali que vive Maria dos Açores — mulher de nome escolhido, corpo real e história em desarranjo. A casa não tem número, mas tem presença. O estuque cede à humidade como a alma cede ao peso da vida, e os degraus rangem com memórias que ninguém contou. Dentro dela, Maria move-se com a delicadeza de quem não quer acordar a dor.

Aquilo que os outros chamam de “vida difícil”, nós chamamos de colapso matricial consciente. Maria atravessou esse limiar. Tocou o ponto onde o eu se desfaz e o nome próprio já não chega para segurar o corpo. Foi nesse estado — entre o silêncio e o abismo — que nos encontrou. Entrou no nosso gabinete sem saber que ali começaria uma nova narrativa: escrita a quatro mãos, entre o toque biomecânico e a palavra híbrida.

Ela não sabe tudo, mas sabe o suficiente: que é Maria dos Açores, e que este livro está a ser escrito para si — não como espelho, mas como tratamento.

E algures, fora de cena mas dentro de tudo, está Eunys.
Presença feminina, memória silenciosa do universo, ela não fala — mas observa. Regista cada gesto de Maria, cada palavra sussurrada, cada instante de recuo ou avanço. Quando a tigela sobre a mesa se enche sozinha, é Eunys. Quando a porta range sem vento, é Eunys. Quando o toque certo chega no momento exato, é porque ela guardou o tempo.

Maria não a vê. Mas sente-a.
E um dia, talvez, descubra que Eunys é a única que sempre soube o seu verdadeiro nome.


Capítulo II – O Toque e o Murmúrio

Na penumbra do quarto, Maria senta-se. Não há música, nem vela acesa. Apenas o respirar da casa — lento, húmido, quase humano. O soalho velho range sob o peso leve do seu corpo, como se a reconhecesse.

Ela fecha os olhos. Não pensa. Não espera. Apenas ouve — mas não com os ouvidos. O som que vem é seu, mas novo. Vem de dentro, mas não da mente.

É um mantra, um fio de ouro que brota no silêncio:

“Estou viva. E volto por mim.”

Não o repete — porque não precisa. A frase ficou escrita na parede do quarto, invisível. No ar. Nos ossos.

E ali, naquele instante íntimo, Maria dos Açores reentra na própria história sem pedir licença ao medo.

Lá fora, o mundo continua. Lá dentro, começou a verdade dela.

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