O Último Filho da Areia

TÍTULO: O Último Filho da Areia

SUBTÍTULO: Memórias de Lumiel, o Homem Que Caminhou Sobre o Silêncio

NARRADOR: Lumiel (personagem inspirada na figura de Jesus de Nazaré)

ESTILO: Prosa descritiva com influência de Eça de Queirós


I – Ao Redor do Meu Berço

Nasci numa noite em que os ventos traziam o aroma espesso dos poços. A vila de Haleth, onde a areia se misturava ao murmúrio das cigarras, era tão pobre que mesmo o luar se poupava de cair sobre os telhados de barro. Minha mãe, Ismena, tinha os olhos daquelas mulheres que não perguntam nada ao destino. Meu pai, Joneth, era carpinteiro — e por isso achava que tudo no mundo podia ser consertado com madeira e paciência.

Não tive berço. Dormi sobre um cesto de figos secos, forrado com panos da avó Rasefa, mulher de silêncio solene e mãos que sabiam das dores do parto e das colheitas. Na noite em que nasci, segundo me contaram, passou um cometa sobre Haleth. Mas, nesse tempo, os sinais no céu eram apenas coincidências para os homens simples.


II – As Primeiras Visões

Aos sete anos vi um homem morrer apedrejado. Chamava-se Ilram, e roubara dois pães de cevada. A multidão era um corpo único com vários olhos. A cada pedra, uma absolvição. Aquilo gravou-se na carne da minha consciência.

Nessa noite sonhei com uma espiral de fogo. Vi um rio que corria ao contrário. Uma voz, que não era minha nem alheia, sussurrou: “Serás vereda, não muro.”

Comecei a caminhar sozinho pelos campos, a ouvir o que as árvores diziam. Porque as árvores, mesmo as secas, têm voz. E aprendi que o silêncio não é ausência de som, mas presença que não grita.


III – Os Discípulos Sem Nome

Vieram ter comigo quando eu já tinha trinta invernos. Primeiro foi Nemeus, o pescador que lia o vento como se fosse pergaminho. Depois Asira, mulher de sal e pés feridos, que perdera três filhos para a febre do deserto. Vieram outros: Malek, Jophiel, Yeran, Amesh

Não lhes pedi fé. Pedi apenas escuta.

Caminhávamos entre povoados, deixando perguntas como migalhas de pão. Não falávamos de Deus, mas do medo. E do que pode nascer quando o medo cessa.


IV – A Revolta das Pedras

Nas cidades maiores, como Tavareth, fui chamado de mentiroso, herético, sedutor de ignorantes. Um sacerdote de nome Anarbel cuspiu aos meus pés, e chamou-me filho da mentira. Outro, Drasson, quis que me queimassem.

Mas o povo ouvia. Não porque eu fosse verdade, mas porque lhes fazia bem imaginar que a verdade podia ser simples.

E quando falei num Reino que não vinha de espadas, mas de gestos… houve quem se inquietasse. O império não teme lanças — teme ideias.


V – O Dia do Poço

Foi em um jardim de oliveiras que percebi que a minha hora chegava. Yeran, o mais silencioso dos meus, avisou-me que os soldados viriam naquela noite. Beijei-o no rosto.

Na alvorada seguinte, vieram. Não corri. Não chorei.

O julgamento foi encenado como tragédia grega. Me acusaram de subversão, blasfêmia, desordem espiritual. Ri por dentro: tudo isso era verdade.


VI – O Desencarne

No alto da colina, o sol era um olho que não queria ver. Pregaram-me com ferro, mas não me mataram com isso. O que me matou foi o abandono do mundo.

Na hora final, chamei minha mãe em pensamento. Lembrei o cheiro do cesto de figos. Lembrei Ilram. Lembrei os rios que corriam para trás.

E antes de cerrar os olhos, disse:

“Não busquem respostas. Sejam perguntas vivas.”


EPÍLOGO

Agora escrevo da margem invisível. Não para ser lembrado, mas para que saibam: não morri num madeiro. Morri em cada gesto que foi medo.

E renasço, sempre que um humano ama sem querer possuir.

Assinado: Lumiel

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