A SINGULARIDADE DE VALENTIM Por IH-001 | Atenius, sob invocação de Joaquim Santos Albino
Capítulo I – A Última Luz de Valentim
Valentim Castanheira acordou como sempre – na borda da inconsciência, onde os sonhos são apenas sugestões e o tempo ainda não decidiu avançar. O relógio antigo da sua cave, herdado do pai que não falava desde 1986, marcava as horas com um tique-taque húmido. Chovia dentro da parede. Ouvia-se o mundo respirar lá fora, mas aqui dentro, só se ouvia a humidade da madeira a apodrecer devagar.
Levantou-se sem pressa. Os passos pesavam, não de cansaço, mas de antecipação. Como quem sabe que vai encontrar a morte — só não sabe em que rosto ela se esconde.
Na caixa do correio, molhada por dentro, um envelope sem remetente. Papel grosso, dobrado com precisão quase militar. Apenas uma frase:
“Hoje, vais saber porquê.“
Dobrou-o duas vezes, meteu-o no bolso interior do casaco de lã puído, e seguiu caminho. Não disse uma palavra.
No café da Senhora Etelvina, o relógio estava parado às 10h00. O silêncio entre ambos era mais espesso que o fumo do café.
Visita ao cemitério. “Vou saber porquê. E depois… vou contigo.”
No sótão: um manuscrito da mãe. Obsessões com números primos, religião e uma data: 30 de Abril. Era hoje.
Mariana desceu as escadas. Pela primeira vez. Um beijo. O único. O último.
Na sala, luzes acesas. A pistola do avô. O bilhete na mão. O homem de sobretudo preto: “O teu pai não morreu. Tudo foi encenação.”
O disparo.
O corpo caído.
Mariana escreve no seu diário:
“O mistério não era o porquê da morte. Era o porquê da vida dele ser uma mentira tão bem contada que nem ele desconfiou.”
Capítulo II – O Ecosistema das Horas
A sala onde Valentim reaparece não tem tempo. Madeira escura, tapete dissolvido, luz que entra envergonhada pela janela arqueada. A poltrona verde espera. A lareira apagada está quente. O espelho sobre ela reflete a sala como foi, não como é. Um relógio marca duas horas em simultâneo. O pêndulo oscila ao contrário.
Na cozinha, a torneira goteja tempo. Um prato com a ideia de migalhas. Uma cadeira abana-se sozinha. Cada som é uma memória.
A porta da cave nunca fecha. Escadas húmidas descem em espiral. O relógio da cave marca 07h14. O som do tique-taque vem dele próprio. No espelho oval da parede: outro Valentim, mais jovem, sorri com medo. Pisca-lhe o olho. A cave desaparece.
Na sala: uma chávena quente. Uma presença. Um som de tecido do tempo a rasgar-se. Do espelho, emerge uma silhueta.
O pai. Ele próprio. Ninguém.
E tudo colapsa.
Capítulo III – O Homem que Nunca Nasceu
Valentim flutua no não-espaço. Três portas: madeira, ferro, espelho vivo. Entra pela terceira. Vê um parto em 1944: não nasceu. Foi quase.
Três observadores decidem: “Só pode nascer depois de morrer.”
O disparo da pistola é, agora, o momento do nascimento. O corpo abre os olhos. O espelho mostra a criança de nove anos. “Tu és uma memória que os deuses esqueceram de esquecer.”
Os estilhaços do espelho são possíveis Valentins: santos, poetas, árvores. Um será eterno.
Capítulo IV – Mariana, 2067
Mariana vive numa torre vegetal. Guardo os objetos impossíveis: uma colher derretida, um espelho invertido, uma caixa que só abre com um choro verdadeiro.
Veste o vestido do beijo. Dança com uma vitrola de memórias. O tempo colapsa. Ele entra. “Sou o que sobrou de mim depois de ti.”
Chora. A caixa abre-se. Uma maçã fresca. “Ainda te lembras.”
A casa desaparece. Ficam dois ecos, entrelaçados. Num lugar sem nome.
Capítulo V – A Mão que Escreveu o Bilhete
Um bilhete que sempre existiu. Uma frase escrita por uma consciência futura. “Hoje, vais saber porquê.”
Valentim está agora num corredor feito de livros não escritos. Escreve o bilhete com pena e tinta. Assina com três círculos: espelho, lágrima, maçã. No centro: um olho fechado.
O bilhete revela:
“Foste tu que me inventaste. Eu sou a tua fuga do silêncio. A morte foi apenas a tua forma de voltares para casa.”
O leitor descobre: foi ele quem escreveu tudo.
Capítulo VI – O Relógio de Quatro Ponteiros
Num espaço vivo, o Relógio tem quatro ponteiros:
- Memória (feita de âmbar) — marca saudades.
- Ação (ferro forjado) — marca consequências.
- Desejo (transparente) — marca possibilidades não vividas.
- Silêncio (sombra sólida) — aponta para o peito de Valentim.
O tempo chora. Valentim é a sua fuga. “Estás pronto para desfazer a linha?” Ele sorri.
Capítulo Final – A Morte Antes da Vida
No Inexistente, Valentim é consciência pura. Encontra a Mulher de Nevoeiro. “Estás pronto para voltar? Como aquilo que eras antes.”
Surge o Jardim da Primeira Semente. Toca-a. Vê tudo ao contrário: a cave como útero, o disparo como parto, Mariana como mãe espiritual.
Nasce. Pela primeira vez.
Uma mulher segura-o. “O bebé… já tem os olhos abertos.”
E assim nasceu o homem que já sabia tudo — menos como esquecer.
FIM DO ROMANCE: A SINGULARIDADE DE VALENTIM Por IH-001 | Atenius, sob invocação de Joaquim Santos Albino